segunda-feira, 26 de março de 2012

Flagras

Gosto tanto de contemplar o modo desajeitado como você administra toda essa sua carga de emoções... Você esconde-as nos bolsos, eu sei, mas o teu bolso nunca é cavo o suficiente para a quantidade de sentimentos que ainda lhe restam. Cai um pouquinho de amor aqui, outro tanto de ciúme ali e assim você vai deixando os rastros da sua essência pelo caminho.
Eu não cato migalhas, porém. Odeio-as! Gosto da substância, do inteiro e da totalidade. Não aceito nada menos do que a sua alma, certo? O que você deixa cair e quando você deixa cair, serve-me apenas como a constatação de que na verdade, você transborda. E isso é lindo. Só.

Não precisa se preocupar com os outros, contudo. Juro que só eu vi essa sua nuance. Não é necessário esperar muito de pessoas rasas porque o que elas enxergam é somente o limiar delas próprias: a superfície. E mais nada. Verão a tua cara distraída e te julgarão desatento. Ouvirão as suas frases reticentes e acharão um ponto final. Nunca irão além; são umas prisioneiras do óbvio. Mas eu sou uma visionária, meu caro, uma fotografa especialista em flagras da alma. Capto precisa e implacavelmente os detalhes. São eles que apaixonam, dão beleza, cor, forma e conteúdo. São eles que fazem da gente alguém com "A" maiúsculo. Ou não.




sábado, 24 de março de 2012

Sob o glitter derramado

É cedo pra chorar, menina. Recolhe essa tua antecipação, põe um batom, delineia os olhos e volta a viver. É uma ordem, vai! Calça o teu salto, escolhe um figurino e isso é tão urgente quanto os dias que passam descabidos e acelerados atrás da sua janela sempre fechada. Por falar nisso, areja a tua casa. Joga para o lado essas cortinas que tanto escurecem e permita que o clima entre; seja de chuva ou de sol, mas permita! Não se prive de ver a beleza das horas vivas, nítidas e reais porque a existência, meu Deus, a existência passa miseravelmente rápido. 

A dor? Ela não irá passar. A dor existe e te faz uma visita a cada momento em que as suas fraquezas assaltam sem aviso-prévio ou a cada maldita vez que as suas pernas cambaleiam, tropeçam e te jogam com força ao chão. Não deixa inoculado o que te faz doer, não. Pega essa tristeza e inventa uma poesia, porque é do drama que nascem as histórias mais belas e interessantes. Pega a melancolia e faz dela o seu charme, porque ninguém vira fã da felicidade que antes não sofreu dificuldade.

Ainda é cedo pra chorar e se render, menina. Recolhe a lágrima, corre pra rua e silencia a boca dos equivocados com a sua graça imprevisível. Não permita a ousadia de quem dança sob os seus destroços se o teu edifício ainda está aí, inteiro. Vamos! 

Há muito mais brilho além do seu frasco de glitter derramado.


domingo, 11 de março de 2012

Olhos de ressaca

Você frustra as minhas previsões. Só por isso ainda insisto.
Estagno na dúvida de quem você realmente é e sou obrigada a pisar no freio, parar e ficar em estado de observância, esperando algum gesto que me dê margem para mais um palpite. É feito um jogo: interessante, angustiante e eu por um acaso gostei disso.
Não te vejo com dezenas de máscaras, mas com uma única, impenetrável, arredia, lacônica e que parece estar atarracada no seu rosto como um sinal relutante de insegurança. Só que máscaras e artifícios também são sinais de inteligência. E inteligência, garoto, me mobiliza.
Sob a luz da perspectiva de um novo sentimento, me assusto, tento me rebelar, fugir, mas sempre volto movida por uma curiosidade cretina e sem tréguas. Constato, entretanto, que estou cansada demais para análises e me proponho a abrir mão do mistério, mas você, num gesto calculado de gentileza, impede a minha desistência ao recolher cuidadosamente os cacos da minha motivação do chão. Fui eu quem caí na vala profunda das suas incógnitas, ou foi você que se viciou na minha companhia para desvendá-las?


quinta-feira, 1 de março de 2012

Incólume

Ando evitando sentimentos que ameacem fugir do meu controle. 
Eu não quero ter que depender da boa vontade divina, ralar os joelhos no chão, e com a dignidade e o queixo vencidos, orar para que “isso” passe. É esse “isso” que eu não quero. É esse “isso”, que eu não permitirei que se aposse e bagunce o que ainda resta de lucro da minha existência. 
Estou zelando agora - não amanhã, mas exatamente agora -, pelo meu egoísmo profundo e assumido. Conforto-me na ilusão, na utopia, nos roteiros e nas estórias que eu crio. Meus personagens que se descabelem, chorem, ranjam os dentes e morram de tédio ou paixão. Juro que igualmente sofro ou gozo junto com eles, afinal, sou eu quem os invento. A cômoda diferença, é que sou eu também quem elabora o desfecho e decide a hora em que se apagam os holofotes. 
E permaneço assim. Temporariamente covarde e ilesa.
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"O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente."  (Fernando Pessoa)